28.6.08




sofia crespo - anunciada embarcação na histeria




desviei para leste do diabo
onde existe uma terra,

colinas secas que prolongam
o dorso de um cabo maldito,

encerrado de imensas histórias de fim
e um gigantesco mar de água.

nos dias de menos fogo,
os pescadores juntam-se,

à volta de um balde sem fundo,
e tentam pescar a terra.

o sol já não existe para este lado,
e quando da onda há outra força,

pelo lado direito existe, igualmente,
um começo de noite, um diferente silêncio,

são todos os animais,
dos que se deitam tão antes dos homens.

excepto os mais inquietos,

os que ainda noite dentro
se encerram uns nos outros

e ficam horas deslocadas
a fornicar a cor que o céu nesta terra tem,
que é a cor de uma suspeita de trabalhos.
quando vim para aqui seria para evitar o caos,
bem longe de tempo ser tempo,
e fabricando alguma paixão e
passar menos quente nas almas dos outros.



26.6.08




camilo pessanha - clepsidra


madalena



...e lhe regou de lágrimas os pés e os
enxugou com os cabelos da sua cabeça.
evangelho de S. Lucas.

ó Madalena, ó cabelos de rastos,
lírio poluído, branca flor inútil...
meu coração, velha moeda fútil,
e sem relevo, os caracteres gastos,

de resignar-se torpemente dúctil...
desespero, nudez de seios castos,
quem também fosse, ó cabelos de rastos,
ensanguentado, enxovalhado, inútil,

dentro do peito, abominável cómico!
morrer tranqüilo, - o fastio da cama...
ó redenção do mármore anatómico,

amargura, nudez de seios castos!...
sangrar, poluir-se, ir de rastos na lama,
ó Madalena, ó cabelos de rastos




21.6.08




ana hatherly - tisanas


era uma vez uma ausência que andava em missão de viagem. quando chegava a uma encruzilhada dava três voltas sobre si própria para perder por completo a noção do caminho por onde viera atingindo assim com regularidade as regiões efémeras do esquecimento. depois regressava a casa.




17.6.08




ana luísa amaral - silogismos



A minha filha perguntou-me
o que era para a vida inteira
e eu disse-lhe que era para sempre.

Naturalmente, menti,
mas também os conceitos de infinito
são diferentes: é que ela perguntou depois
o que era para sempre
e eu não podia falar-lhe em universos
paralelos, em conjunções e disjunções
de espaço e tempo,
nem sequer em morte.

A vida inteira é até morrer,
mas eu sabia ser inevitável a questão
seguinte: o que é morrer?

Por isso respondi que para sempre
era assim largo, abri muito os braços,
distraí-a com o jogo que ficara a meio.

(No fim do jogo todo,
disse-me que amanhã
queria estar comigo para a vida inteira)



15.6.08

8.6.08




ana luísa amaral - ritmos


e descascar ervilhas ao ritmo de um verso:
a prosódia da mão, a ervilha dançando
em redondilha.
misturar ritmos em teia apertada: um vira
bem marcado pelo jazz, pas
de deux: eu, ervilha e mais ninguém

de vez em quando o salto: disco sound
o vazio pós-moderno e sem sentido
ah! hedónica ervilha tão sozinha
debaixo do fogão!

as irmãs recuperadas ainda em anos 20
o prazer da partilha: cebola, azeite
blues desconcertantes, metamorfose em
refogados rítmicos

(debaixo do fogão só o silêncio frio)



7.6.08




joaquim manuel magalhães - as escadas não têm degraus


(...)

a última claridade do dia mistura-se
à primeira da noite.
este vento na auto-estrada onde rebenta a chuva
não me vai forçar o coração; nem estas sebes
ladeadas de cimento suspenderão o voo
do que sou até ao que não és. mas será
a carícia que no cinto treme, o calor do pescoço
descoberto, os vimes da cadeira donde te levantas
quando estou quase para me sentar.

(...)

a vida acumulou-se em roldanas ao redor de tudo,
um fumo que sobe durante a noite sobre os mapas
enrolados na parede despida, há tanto nos esquecemos
de os desdobrar, de por eles chegar aos confins
do nosso mundo. e já estamos a desaparecer.



5.6.08




joao miguel fernandes jorge - como conversámos aquela noite.



era o quarto de azulejo.
o cheiro do tabaco.
o cão
os olhos para que visse o de fora.
cego
conhecendo a terra sem se conhecer.
em nós
fizemos sair a lua o sol.
em todos
o visível o invisível.

éramos nós e estávamos no fim do mundo.

como conversámos aquela noite.
era o quarto de azulejo
a mesa de braseira o cheiro do tabaco.
andara sem destino durante meses
e, aquela noite surgia com o simples virar a
página de um livro,
quando uma palavra torna claro o enredo de longos capítulos.
assim duas vidas se revelam.

éramos nós.
estávamos no fim do mundo, quero dizer,
encontrei-me de súbito na minha vida,
na sua vida.


1.6.08




fiama hassa pais brandão - a porta branca


por detrás desta porta,
uma de todas as portas
que para mim se abrem e se fecham,
estou eu ou o universo que eu penso.

deste meu lado, dois olhos que vigiam
os fenómenos naturais,
incluindo a celeste mecânica
e as sociedades humanas, sedentárias e transumantes.

mas podem os olhos fazer a sua enumeração,
e pode o pensado universo infindamente ir-se,
que para mim o que hoje importa
é aquela olhada vaga porta.

que ela seja só como a vejo, a porta branca,
com duas almofadas em recorte,
lançada devagar sobre o vão do jardim,
onde o gato, por uma fenda aberta
pela sua pata, tenta ver-me,
tão alheio a versos e a universos.







chevalier de pas - aos 8 anos

à minha querida mamã


oh terras de Portugal
oh terras onde eu nasci
por muito que goste delas
ainda gosto mais de ti