1.11.09




jorge de sena


meu corpo, que mais receias?

-meu corpo, que mais receias?
-receio quem não escolhi.
-na treva que as mãos repelem
os corpos crescem trementes.
ao toque leve e ligeiro
o corpo torna-se inteiro,
todos os outros ausentes.
os olhos no vago
das luzes brandas e alheias;
joelhos, dentes e dedos
se cravam por sobre os medos...

meu corpo, que mais receias?

-receio quem não escolhi,
quem pela escolha afastei.
de longe, os corpos que vi
me lembram quantos perdi
por este outro que terei.


30.9.09



herberto helder



...então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo...


25.9.09



eugénio de andrade



Toda a manhã
fui a flor
impaciente
por abrir.

Toda a manhã
fui ardor
do sol
no teu telhado.

Toda a manhã
fui ave
inquieta
no teu jardim.

Toda a manhã
fui ave ou sol ou flor
secretamente
ao pé de ti.



21.2.09




eugénio de andrade

a mão
que entregava à tua
os primeiros sinais do verão
já não sabe o caminho - é como se
em vez de aprender fosse cada vez mais
e mais ignorante.
ou ignorar fosse todo o saber.




22.11.08




herberto helder - fonte - I


ela é a fonte.
eu posso saber que é a grande fonte
em que todos pensaram. quando no campo
se procurava o trevo, ou em silêncio
se esperava a noite,
ou se ouvia algures na paz da terra
o urdir do tempo ---
cada um pensava na fonte.
era um manar
secreto e pacífico.
uma coisa milagrosa que acontecia
ocultamente.

ninguém falava dela, porque
era imensa. mas todos a sabiam
como a teta. como o odre.
algo sorria dentro de nós.

minhas irmãs faziam-se mulheres
suavemente.
meu pai lia.
sorria dentro de mim uma aceitação
do trevo, uma descoberta muito casta.
era a fonte.

eu amava-a dolorosa e tranquilamente.
a lua formava-se
com uma ponta subtil de ferocidade,
e a maçã tomava um princípio
de esplendor.

hoje o sexo desenhou-se. o pensamento
perdeu-se e renasceu.
hoje sei permanentemente que ela é a fonte.




29.7.08




crespúsculo - david mourão ferreira


é quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
quando a noite se destaca
da cortina;
quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
quando a força de vontade
ressuscita;
quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
e quando às sete da tarde
morre o dia
- que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz lívida, a palavra
despedida.


6.7.08




ana luísa amaral - fingimento poético


"finge tão completamente"



Faz-me falta a tristeza
para o verso:
falta feroz de amante,
ausência provocando dor maior.

Tristeza genuína, original,
a rebentar entranhas e navios
sem mar.
Tristeza redundando em mais

tristeza, desaguando em métrica
de cor.
Recorro-me a jornal, mas é
em vão. A livros russos (largos

e sombrios).
Em provocado rio de depressão,
nem zepellin: balão
a ervas rente.

Um arrastão sonhando-se
navio.
Só se for o que diz o que
deveras sente.

A sério: o Zepellin.
Mas coração:
combóio cuja corda
se partiu.