28.2.08



Requiem


há mortos que demoram a morrer
é inútil sepultá-los eles voltam
demoram-se por vezes numa sombra
num braço de cadeira ou no rebordo partido
de uma chávena. ou então escondem-se
em pequenas caixas sobre as mesas.
há objectos que ficam cheios deles
são como o resto transmudado dos ausentes
sua marca na casa e no efémero.
por isso custa tanto retirar o prato e o talher
arrumar os fatos desfazer
a cama. há mortos
que nunca mais se vão embora.
há mortos que não param de doer.



24.2.08



carlos queirós (1907-1949)


ouvir a tua voz, outrora, era o bastante
para sentir, enfim, justificada, a vida;
e supor que podia, a partir desse instante,
abrir, impunemente, ao mundo, confiante,
minh'alma enternecida.

fitar o teu olhar, era um deslumbramento.
que me transfigurava e me fazia crer
que depois de viver, na terra, esse momento,
-- sereno, como após o extremo sacramento --,
já podia morrer.

premia as tuas mãos nas minhas e dizia,
com profunda emoção: -- É só por ti que existo!
-- como foi isto, amor? Do nosso olhar, um dia,
caiu neve no fogo em que a minh'alma ardia...
amor, como foi isto?!

passas por mim, agora, e nada me insinua
ser a tua presença o derradeiro elo
que me prendia à vida. -- E a vida continua!
e tudo, como outrora, (o sol, o mar, a lua...)
mesmo sem ti, é belo!

como havemos de ter, nos outros, confiança?
que humano sentimento a nossa fé merece?
de que servem, na vida, os ideais e a esperança,
se o próprio Amor, -- como os brinquedos, em criança --,
tão cedo, para nós, perde o encanto e esquece?!



16.2.08



agostinho da silva (1906-1994)



Obstáculo foi coisa que jamais me importou; procurei sempre seguir nisto a lição dos rios: tiram a extensão e variedade do seu curso daquilo que se lhes opõe; ou das pedras: depende do que somos esbarrarmos nelas e nos queixarmos ou subir-lhes em cima e ver mais longe. Se eu fosse judeu da diáspora, o que não calhou, viveria de esperanças; como nasci com Cristo e vai toda a humanidade, ao contrário do que às vezes parece, de volta ao Paraíso, dentro e fora de nós se construindo, vivo de certezas; sempre apoiado na bengala da dúvida metódica, claro está...



10.2.08



alexandre o'neill (1924-1986)


há palavras que nos beijam
como se tivessem boca,
palavras de amor, de esperança,
de imenso amor, de esperança louca.

palavras nuas que beijas
quando a noite perde o rosto,
palavras que se recusam
aos muros do teu desgosto.

de repente coloridas
entre palavras sem cor,
esperadas, inesperadas
como a poesia ou o amor.

(o nome de quem se ama
letra a letra revelado
no mármore distraído,
no papel abandonado)

palavras que nos transportam
aonde a noite é mais forte,
ao silêncio dos amantes
abraçados contra a morte.


4.2.08


alberto caeiro

Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...