31.5.08




alexandre o'neill - 1924-1986
uma coisa em forma de assim


Quando falas ou simulas falar de ti próprio e amalgamas passado, presente, futuro, há sempre os que perguntam se o que contaste é verdade ou não.

Nunca indagam se vai ser verdade. O que lhes interessa é saber, com a curiosidade dos intriguistas, se o que se passou (ou parece ter-se passado) se passou mesmo contigo.

É um erro de gente vulgar. Parasitários ou não, qualquer invenção ou patranha, qualquer «mentir verdadeiro» é acepipe biográfico, é pretexto para te enfileirarem na nulidade biográfica que é a deles próprios e tecerem incansavelmente histórias a teu respeito.

Não te deixes seduzir pelo gosto da conversa. Essa pequena gente não merece a mais pequena atenção, nem tu precisas de espectadores para o salutar exercício diário de falar por falar.

(...) Não deixes que metam o nariz na tua vida. Caso contrário, vais ficar cheio de gente, com a sua vida escassamente interessante.
O tombo da vida vulgar já foi feito por escritores como Camilo. E tenho a impressão de que, no essencial, a vida vulgar continua a mesma.


Desunha-te a escrever (olha que já tens pouco tempo!), mas fá-lo com a discrição e a reserva de quem não se dá às primeiras. É outro exercício salutar.



25.5.08




robert walser - 1878-1956



Conheço uma importante musa que nada sabe de poesia, mas que é ela própria um poema, o que para um poeta é muito importante. Quem é insolente com ela apenas se depara com o seu magnífico espanto. Já lhe dediquei o meu canto uma ou duas vezes, mas por ora fiquei sempre aquém. Ela afugentou-me, e eu ri-me alegremente, como se ela tivesse concedido uma noite ao poeta, e ele respondesse com frieza, porque a sua fantasia já lhe tinha oferecido a visão do corpo dela. Nunca mais voltarei a amar.

Ela fez de mim uma criança que admira o mundo, que segue a mais bela doutrina e teme Deus. Os sapatos dela não são maravilhosos. Mas gosto bastante do guardanapo com que ela brinca. Nunca poderei voltar a vê-la, e no entanto, sou feliz, ainda que na verdade não devesse ser. Fui um sem-vergonha com ela, porque a sua presença me deixava a tremer e porque queria dar uma ilusão de superioridade e porque achava tolo e quase odiava esse estremecimento, este amor.

Mas quando estamos longe um do outro, brinco com ela e afago-a, salto como um rapazinho tonto. Seria bem capaz de a esquecer aí uns quatro anos, mas depois tudo voltaria outra vez. É espantoso saber isso! Nunca tinha reparado no poder que uma rapariga tem. Toda a lealdade e tudo o que em mim há de bom fica prostrado por terra diante do vestido da única mulher. Estou tão alegre como só me sinto de manhã cedo, e no entanto é meia-noite, e escrevo estas linhas como se não as fosse dar a ler a ninguém.




24.5.08




rainer maria rilke - 1875/1926


The great renewal of the world will perhaps consist in this, that man and maid, freed of all false feelings and reluctances, will seek each other not as opposites, but as brother and sister, as neighbors, and will come together as human beings.



22.5.08




rainer maria rilke - 1875/1926 - o mundo estava no rosto da amada



o mundo estava no rosto da amada
e logo se converteu em nada,
num mundo fora do alcance,
mundo-além.
por que não o bebi quando o
encontrei no rosto amado,
um mundo à mão, ali,
aroma em minha boca,
eu só seu rei?
ah, eu bebi. com que sede eu bebi.
mas eu também estava pleno de mundo
e, bebendo, eu mesmo transbordei.





18.5.08




sylvia plath - palavras


golpes
de machado na madeira,
e os ecos!
ecos que partem
a galope.

a seiva
jorra como pranto, como
água lutando
para repor o seu espelho
sobre a rocha

que cai e rola,
crânio branco
comido pelas ervas.
anos depois, na estrada,
encontro

essas palavras secas e sem rédeas,
bater de cascos incansável.
enquanto
do fundo do poço, estrelas fixas
decidem uma vida.



6.5.08




mensageiro


a cabeça assomando à porta -
será que ele vem?

ouvidos à escuta dos seus passos,
e um coração que nunca pára de falar dele

um mensageiro:
"não me sinto bem..."

porque não vem ter comigo
e me diz
que encontrou outra rapariga?
outro coração que há-de sofrer


(poemas de amor do antigo egipto)



2.5.08




eugénio de andrade - as colinas nevadas



É a música. De algum lado virá, é impossível que não venha do avesso da morte; com esse cheiro a resina deve ter atravessado os lúcidos bosques do verão, acolhido nas suas pausas o ardor das colinas nevadas. É a música. Procura-me. Terna, violenta, leva-me nas suas águas. Fundas. Frescas.