16.1.08


nuno júdice

trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor
que se despeja no copo da vida, até meio, como se
o pudéssemos beber de um trago. no fundo,
como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na
boca. pergunto onde está a transparência do
vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta
são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa
da alma suja de restos, palavras espalhadas
num cansaço de sentidos. volto, então, à primeira
hipótese. o amor. mas sem o gastar de uma vez,
esperando que o tempo encha o copo até cima,
para que o possa erguer à luz do teu corpo
e veja, através dele, o teu rosto inteiro.



11.1.08



drummond de andrade


Não passou

Passou?
Minúsculas eternidades
deglutidas por mínimos relógios
ressoam na mente cavernosa.

Não, ninguém morreu, ninguém foi infeliz.
A mão- a tua mão, nossas mãos-
rugosas, têm o antigo calor
de quando éramos vivos. Éramos?

Hoje somos mais vivos do que nunca.
Mentira, estarmos sós.
Nada, que eu sinta, passa realmente.
É tudo ilusão de ter passado


10.1.08



david mourão-ferreira


e por vezes as noites duram meses
e por vezes os meses oceanos
e por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
e por vezes fingimos que lembramos
e por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos corpos encontramos

e por vezes sorrimos ou choramos
e por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos


8.1.08


boris vian - 1920 - 1959

Quero uma vida em forma de espinha
Num prato azul
Quero uma vida em forma de coisa
No fundo dum sítio sozinho
Quero uma vida em forma de areia nas minhas mãos
Em forma de pão verde ou de cântara
Em forma de sapata mole
Em forma de tanglomanglo
De limpa chaminés ou de lilás
De terra cheia de calhaus
De cabeleireiro selvagem ou de édredon louco
Quero uma vida em forma de ti
E tenho-a mas ainda não é bastante
Eu nunca estou contente

Canções e Poemas (tradução de Irene Freire Nunes e Fernando Cabral Martins)