13.10.07



«Chegar, deitar-se: por vezes os dois actos sucedem-se e encadeiam-se com tal rapidez como se entre ambos não decorresse, hesitante ou cegamente precipitada, aquela operação, um tanto mágica à força de tão simples, de primeiro se descalçar, de logo em seguida se despir. Deitada de través em cima do largo divã, os seus braços tomam de súbito a postura de dois ramos oblíquos, na quase pânica expectativa de sentir-se adorada. Devagar os vai depois estreitando, até que ficam inteiramente estirados para trás; mas já as pernas entretanto começaram a reproduzir, em posição inversa, o grafismo da mesma letra.

Digamos, para simplificar, que se chama Y. (E surpreendo-me a murmurar: Ípsilon...).
Além de não querer nem poder dizer o seu nome, o nome é o que menos interessa; ou o que menos deveria interessar-nos. Mas só o facto de lhe chamar Y já a torna diferente de quem ela é, de quem eu julgo que ela seja.

Com esta sigla de empréstimo, ei-la desde logo um pouco embrulhada, ligeiramente encoberta ou menos tangível, somo se o rosto e os cabelos lhe ficassem também em boa parte velados, entrançadamente semiocultos por aquele xaile branco, de malha entreaberta e muito larga, quase a evaporar-se, que só costuma aliás colocar em cima dos ombros nus. Pior para mim: assim ainda me parece mais desejável.»

nota: o xaile branco que nunca se esquece de trazer, no fundo de um saco de Hermès...


David Mourão-Ferreira, Um amor feliz, Ed. Presença, 1999



1 comentário:

Maria disse...

Ainda ontem estive a ler este livro.....
É tão bonito....

Beijinho