21.2.09




eugénio de andrade

a mão
que entregava à tua
os primeiros sinais do verão
já não sabe o caminho - é como se
em vez de aprender fosse cada vez mais
e mais ignorante.
ou ignorar fosse todo o saber.




22.11.08




herberto helder - fonte - I


ela é a fonte.
eu posso saber que é a grande fonte
em que todos pensaram. quando no campo
se procurava o trevo, ou em silêncio
se esperava a noite,
ou se ouvia algures na paz da terra
o urdir do tempo ---
cada um pensava na fonte.
era um manar
secreto e pacífico.
uma coisa milagrosa que acontecia
ocultamente.

ninguém falava dela, porque
era imensa. mas todos a sabiam
como a teta. como o odre.
algo sorria dentro de nós.

minhas irmãs faziam-se mulheres
suavemente.
meu pai lia.
sorria dentro de mim uma aceitação
do trevo, uma descoberta muito casta.
era a fonte.

eu amava-a dolorosa e tranquilamente.
a lua formava-se
com uma ponta subtil de ferocidade,
e a maçã tomava um princípio
de esplendor.

hoje o sexo desenhou-se. o pensamento
perdeu-se e renasceu.
hoje sei permanentemente que ela é a fonte.




29.7.08




crespúsculo - david mourão ferreira


é quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
quando a noite se destaca
da cortina;
quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
quando a força de vontade
ressuscita;
quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
e quando às sete da tarde
morre o dia
- que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz lívida, a palavra
despedida.


6.7.08




ana luísa amaral - fingimento poético


"finge tão completamente"



Faz-me falta a tristeza
para o verso:
falta feroz de amante,
ausência provocando dor maior.

Tristeza genuína, original,
a rebentar entranhas e navios
sem mar.
Tristeza redundando em mais

tristeza, desaguando em métrica
de cor.
Recorro-me a jornal, mas é
em vão. A livros russos (largos

e sombrios).
Em provocado rio de depressão,
nem zepellin: balão
a ervas rente.

Um arrastão sonhando-se
navio.
Só se for o que diz o que
deveras sente.

A sério: o Zepellin.
Mas coração:
combóio cuja corda
se partiu.


28.6.08




sofia crespo - anunciada embarcação na histeria




desviei para leste do diabo
onde existe uma terra,

colinas secas que prolongam
o dorso de um cabo maldito,

encerrado de imensas histórias de fim
e um gigantesco mar de água.

nos dias de menos fogo,
os pescadores juntam-se,

à volta de um balde sem fundo,
e tentam pescar a terra.

o sol já não existe para este lado,
e quando da onda há outra força,

pelo lado direito existe, igualmente,
um começo de noite, um diferente silêncio,

são todos os animais,
dos que se deitam tão antes dos homens.

excepto os mais inquietos,

os que ainda noite dentro
se encerram uns nos outros

e ficam horas deslocadas
a fornicar a cor que o céu nesta terra tem,
que é a cor de uma suspeita de trabalhos.
quando vim para aqui seria para evitar o caos,
bem longe de tempo ser tempo,
e fabricando alguma paixão e
passar menos quente nas almas dos outros.



26.6.08




camilo pessanha - clepsidra


madalena



...e lhe regou de lágrimas os pés e os
enxugou com os cabelos da sua cabeça.
evangelho de S. Lucas.

ó Madalena, ó cabelos de rastos,
lírio poluído, branca flor inútil...
meu coração, velha moeda fútil,
e sem relevo, os caracteres gastos,

de resignar-se torpemente dúctil...
desespero, nudez de seios castos,
quem também fosse, ó cabelos de rastos,
ensanguentado, enxovalhado, inútil,

dentro do peito, abominável cómico!
morrer tranqüilo, - o fastio da cama...
ó redenção do mármore anatómico,

amargura, nudez de seios castos!...
sangrar, poluir-se, ir de rastos na lama,
ó Madalena, ó cabelos de rastos




21.6.08




ana hatherly - tisanas


era uma vez uma ausência que andava em missão de viagem. quando chegava a uma encruzilhada dava três voltas sobre si própria para perder por completo a noção do caminho por onde viera atingindo assim com regularidade as regiões efémeras do esquecimento. depois regressava a casa.