10.5.15

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

( Carlos Drummond de Andrade )

26.12.10



carlos drummond de andrade


cada irmão é diferente.
sozinho acoplado a outros sozinhos.
a linguagem sobe escadas, do mais moço,
ao mais velho e seu castelo de importância.
a linguagem desce escadas, do mais velho
ao mísero caçula.
são seis ou são seiscentas
distâncias que se cruzam, se dilatam
no gesto, no calar, no pensamento?
que léguas de um a outro irmão.
entretanto, o campo aberto,
os mesmos copos,
o mesmo vinhático das camas iguais.
a casa é a mesma. Igual,
vista por olhos diferentes?
são estranhos próximos, atentos
à área de domínio, indevassáveis.
guardar o seu segredo, sua alma,
seus objectos de toalete. Ninguém ouse
indevida cópia de outra vida.
ser irmão é ser o quê? Uma presença
a decifrar mais tarde, com saudade?
com saudade de quê? De uma pueril
vontade de ser irmão futuro, antigo e sempre?


14.12.10




Lawrence Ferlinghetti



"(...) Dádá devia ter gostado de um dia como este
com este sol de lâmpada eléctrica
que ilumina de uma forma tão diferente
pessoas diferentes
mas que ilumina de modo tão idêntico
toda a gente
e tudo
tal como
um pássaro que vai cantar
um avião numa nuvem debruada a ouro
uma mão com um esfregão
a acenar à janela
ou um telefone que vai tocar
ou uma boca que vai deixar de
fumar
(...)"



24.10.10




ana hatherly


eu não sou a que aparece
eu sou a que me inventei

sou sem ninguém
ébria de escrita
vou renascer do meu fim

inclina-te a mim:
tenho asas!


21.3.10



afinal o que importa. é não ter medo




1.1.10




fernando pessoa


tão ABSTRATA é a ideia do teu ser
que me vem de te olhar, que, ao entreter
os meus olhos nos teus, perco-os de vista
e nada fica em meu olhar, e dista
teu corpo do meu ver tão longemente,
e a ideia do teu ser fica tão rente
ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
sabendo que tu és, que, só por ter-me,
consciente de ti, nem a mim sinto.
e assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
a ilusão da sensação, e sonho,
não te vendo, nem vendo, nem sabendo,
que te vejo, ou sequer que sou, risonho,
do interior crepúsculo tristonho
em que sinto que sonho o que me sinto sendo.


1.11.09




jorge de sena


meu corpo, que mais receias?

-meu corpo, que mais receias?
-receio quem não escolhi.
-na treva que as mãos repelem
os corpos crescem trementes.
ao toque leve e ligeiro
o corpo torna-se inteiro,
todos os outros ausentes.
os olhos no vago
das luzes brandas e alheias;
joelhos, dentes e dedos
se cravam por sobre os medos...

meu corpo, que mais receias?

-receio quem não escolhi,
quem pela escolha afastei.
de longe, os corpos que vi
me lembram quantos perdi
por este outro que terei.