26.4.08
salim jabrane - primeira noite
é a primeira noite
lá fora a voz da chuva
distingo
através das grades
a sombra duma palmeira
o frio é penetrante
os cobertores: escarros e bicharada
silêncio
estou só, preso
só, só
como as vagas da solidão são profundas!
sózinho na noite, a pensar
a murmurar, a cantarolar, a lembrar-me:
o meu país
como vós sois estúpidos
ó inimigos do meu país!
é a primeira noite
não é a última
Poeta palestiniano. Porque uns têm e outros NãO.
16.4.08
jorge Luis Borges - posse do ontem
sei que perdi tantas coisas
que não poderia contá-las,
e que essas perdas, agora,
são o que é meu.
sei que perdi o amarelo
e o preto e penso nessas
impossíveis cores como
não pensam os que vêem.
meu pai morreu
e está sempre a meu lado.
quando quero escandir
versos de swinburne, eu o
faço, dizem-me, com sua
voz. só o que morreu é
nosso, só é nosso o que
perdemos. ílion se foi, mas
ílion perdura no
hexâmetro que a pranteia.
israel se foi quando era
uma antiga nostalgia. todo
poema, com o tempo, é
uma elegia. são nossas as
mulheres que nos
deixaram, não mais
sujeitos à véspera, que é
angústia, e aos alarmes e
terrores da esperança. não
há outros paraísos senão os
paraísos perdidos.
12.4.08
27.3.08
nuno júdice - braille
Leio o amor no livro
da tua pele;
demoro-me em cada
sílaba, no sulco macio
das vogais, num breve
obstáculo de consoantes,
em que os meus dedos
penetram, até chegarem
ao fundo dos sentidos.
Desfolho as páginas
que o teu desejo me abre,
ouvindo o murmúrio
de um roçar de palavras
que se juntam,
como corpos,
no abraço de cada frase.
E chego ao fim
para voltar ao princípio,
decorando
o que já sei,
e é sempre novo
quando o leio na tua pele.
4.3.08
valter hugo mãe
somos uma árvore nem sempre
pensada. vimos uns dos outros como
se fossemos terra uns dos outros, terra e
sangue, ágil sobre o tempo por
instinto e uma certa paixão. somos
uma árvore nem sempre erguida.
temo-nos uns aos outros como
causas e efeitos em busca dos
caminhos e uma certa paixão.
somos uma árvore nem sempre
razoável. magoamo-nos uns aos
outros como necessitados de coisas
más sem grandes razões e de
uma certa paixão
28.2.08
Requiem
há mortos que demoram a morrer
é inútil sepultá-los eles voltam
demoram-se por vezes numa sombra
num braço de cadeira ou no rebordo partido
de uma chávena. ou então escondem-se
em pequenas caixas sobre as mesas.
há objectos que ficam cheios deles
são como o resto transmudado dos ausentes
sua marca na casa e no efémero.
por isso custa tanto retirar o prato e o talher
arrumar os fatos desfazer
a cama. há mortos
que nunca mais se vão embora.
há mortos que não param de doer.
24.2.08
carlos queirós (1907-1949)
ouvir a tua voz, outrora, era o bastante
para sentir, enfim, justificada, a vida;
e supor que podia, a partir desse instante,
abrir, impunemente, ao mundo, confiante,
minh'alma enternecida.
fitar o teu olhar, era um deslumbramento.
que me transfigurava e me fazia crer
que depois de viver, na terra, esse momento,
-- sereno, como após o extremo sacramento --,
já podia morrer.
premia as tuas mãos nas minhas e dizia,
com profunda emoção: -- É só por ti que existo!
-- como foi isto, amor? Do nosso olhar, um dia,
caiu neve no fogo em que a minh'alma ardia...
amor, como foi isto?!
passas por mim, agora, e nada me insinua
ser a tua presença o derradeiro elo
que me prendia à vida. -- E a vida continua!
e tudo, como outrora, (o sol, o mar, a lua...)
mesmo sem ti, é belo!
como havemos de ter, nos outros, confiança?
que humano sentimento a nossa fé merece?
de que servem, na vida, os ideais e a esperança,
se o próprio Amor, -- como os brinquedos, em criança --,
tão cedo, para nós, perde o encanto e esquece?!
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