24.10.10




ana hatherly


eu não sou a que aparece
eu sou a que me inventei

sou sem ninguém
ébria de escrita
vou renascer do meu fim

inclina-te a mim:
tenho asas!


21.3.10



afinal o que importa. é não ter medo




1.1.10




fernando pessoa


tão ABSTRATA é a ideia do teu ser
que me vem de te olhar, que, ao entreter
os meus olhos nos teus, perco-os de vista
e nada fica em meu olhar, e dista
teu corpo do meu ver tão longemente,
e a ideia do teu ser fica tão rente
ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
sabendo que tu és, que, só por ter-me,
consciente de ti, nem a mim sinto.
e assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
a ilusão da sensação, e sonho,
não te vendo, nem vendo, nem sabendo,
que te vejo, ou sequer que sou, risonho,
do interior crepúsculo tristonho
em que sinto que sonho o que me sinto sendo.


1.11.09




jorge de sena


meu corpo, que mais receias?

-meu corpo, que mais receias?
-receio quem não escolhi.
-na treva que as mãos repelem
os corpos crescem trementes.
ao toque leve e ligeiro
o corpo torna-se inteiro,
todos os outros ausentes.
os olhos no vago
das luzes brandas e alheias;
joelhos, dentes e dedos
se cravam por sobre os medos...

meu corpo, que mais receias?

-receio quem não escolhi,
quem pela escolha afastei.
de longe, os corpos que vi
me lembram quantos perdi
por este outro que terei.


30.9.09



herberto helder



...então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo...


25.9.09



eugénio de andrade



Toda a manhã
fui a flor
impaciente
por abrir.

Toda a manhã
fui ardor
do sol
no teu telhado.

Toda a manhã
fui ave
inquieta
no teu jardim.

Toda a manhã
fui ave ou sol ou flor
secretamente
ao pé de ti.



21.2.09




eugénio de andrade

a mão
que entregava à tua
os primeiros sinais do verão
já não sabe o caminho - é como se
em vez de aprender fosse cada vez mais
e mais ignorante.
ou ignorar fosse todo o saber.