14.12.10




Lawrence Ferlinghetti



"(...) Dádá devia ter gostado de um dia como este
com este sol de lâmpada eléctrica
que ilumina de uma forma tão diferente
pessoas diferentes
mas que ilumina de modo tão idêntico
toda a gente
e tudo
tal como
um pássaro que vai cantar
um avião numa nuvem debruada a ouro
uma mão com um esfregão
a acenar à janela
ou um telefone que vai tocar
ou uma boca que vai deixar de
fumar
(...)"



24.10.10




ana hatherly


eu não sou a que aparece
eu sou a que me inventei

sou sem ninguém
ébria de escrita
vou renascer do meu fim

inclina-te a mim:
tenho asas!


21.3.10



afinal o que importa. é não ter medo




1.1.10




fernando pessoa


tão ABSTRATA é a ideia do teu ser
que me vem de te olhar, que, ao entreter
os meus olhos nos teus, perco-os de vista
e nada fica em meu olhar, e dista
teu corpo do meu ver tão longemente,
e a ideia do teu ser fica tão rente
ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
sabendo que tu és, que, só por ter-me,
consciente de ti, nem a mim sinto.
e assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
a ilusão da sensação, e sonho,
não te vendo, nem vendo, nem sabendo,
que te vejo, ou sequer que sou, risonho,
do interior crepúsculo tristonho
em que sinto que sonho o que me sinto sendo.


1.11.09




jorge de sena


meu corpo, que mais receias?

-meu corpo, que mais receias?
-receio quem não escolhi.
-na treva que as mãos repelem
os corpos crescem trementes.
ao toque leve e ligeiro
o corpo torna-se inteiro,
todos os outros ausentes.
os olhos no vago
das luzes brandas e alheias;
joelhos, dentes e dedos
se cravam por sobre os medos...

meu corpo, que mais receias?

-receio quem não escolhi,
quem pela escolha afastei.
de longe, os corpos que vi
me lembram quantos perdi
por este outro que terei.


30.9.09



herberto helder



...então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo...


25.9.09



eugénio de andrade



Toda a manhã
fui a flor
impaciente
por abrir.

Toda a manhã
fui ardor
do sol
no teu telhado.

Toda a manhã
fui ave
inquieta
no teu jardim.

Toda a manhã
fui ave ou sol ou flor
secretamente
ao pé de ti.