21.11.07



josé gomes ferreira - 1900-1985


Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhas, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer:
Fulano de tal comunica a V. Exa.
que vai transformar-se em nuvem hoje às 9 horas.
Traje de passeio.
E então, solenemente, com passos de reter tempo,
fatos escuros, olhos de lua de cerimónia,
viríamos todos assistir à despedida.
Apertos de mãos quentes.
Ternura de calafrio. Adeus! Adeus!
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos...)
a carne, em vez de apodrecer,
começaria a transfigurar-se em fumo...
tão leve... tão sutil... tão polen... como aquela nuvem além (vêem) -
nesta tarde de outono ainda tocada por um vento de lábios azuis...


2 comentários:

Maria disse...

Era tão lindo, este Poeta militante....
... e que forma suave de irmos embora....

Beijinhos

[A] disse...

gostaria...