12.8.07

aqui mereço-te - antónio ramos rosa

o sabor do pão e da terra e uma luva de orvalho na mão ligeira. a flor fresca que respira é branca. e corto o ar como um pão enquanto caminho entre searas. pertenço em cada movimento a esta terra. o meu suor tem o gosto das ervas e das pedras. sorvo o silêncio visível entre as árvores. é aqui e agora o dilatado abraço das raízes claras do sono. sob as pálpebras transparentes deste dia o ar é o suspiro dos próprios lábios. amar aqui é amar no mar, mas com a resistência das paredes da terra a mão flui liberta tão livre como o olhar. aqui posso estar seguro e leve no silêncio entre calmas formas, matérias densas, raízes lentas, ao fogo esparso que alastra no horizonte. no meu corpo acende-se uma pequena lâmpada. tudo o que eu disser são os lábios da terra, o leve martelar das línguas de água, as feridas da seiva, o estalar das crostas, o murmúrio do ar e do fogo sobre a terra, o incessante alimento que percorre o meu corpo. aqui no grande olhar eu vejo e anuncio as claras ervas, as pedras vivas, os pequenos animais, os alimentos puros, as espessas e nitritivas paredes do sono, o teu corpo com todo o vagar da sua massa, todo o peso das coisas e a ligeireza do ar. ao flexível volante trabalhado pelas seivas a minha mão alia-se: bom dia, horizonte. uma saúde nova vai nascer destes ombros. a lâmpada respira ao ritmo da terra. sei os caminhos de água pelas veredas, as mãos das ervas finas embriagadas de ar, o silêncio donde se ergue a torre do canto. abrem-se os novos lábios e eu mereço-te. é este reino de insectos e de jogos, das carícias que sabem a uma sede feliz. aqui entre o poço e o muro, neste pequeno espaço de pedra cai um silêncio antigo: uma infância inextinguível se alimenta de uma fábula que renasce em todas as idades. é aqui, minha filha, que dança a fada do ar com seu brilho sedoso de erva fina e a sua abelha silenciosa sobre a fronte. é aqui o eterno recanto onde a água diz a pura praia da infância. aqui bebe e bebe longamente o hábito da tristeza no silêncio da vida, aqui, ó pátria de água calada e de pão doce, da fundura do tempo, da lonjura permanente, aqui, bom dia, minha filha.

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1 comentário:

Maurette disse...

Ave grande António Ramos Rosa! Que texto forte, que emoção, amiga. Senti como se tivesse enterrado o meu nariz na terra fresca, revolvida, pronta para receber as sementes de algum futuro.
Beijos
Maurette